Legalidade Formal e Legalidade Material E Direito Penal do Inimigo e Movimento da Lei e da Ordem
O princípio da legalidade não exige apenas que uma lei
discipline a conduta que se pretende prescrever. Esse é o aspecto formal do
princípio. A afirmação de Zagrebelsky, citado por Inocêncio Coelho, não pode
prosperar rigidamente num Estado de Direito. O Estado é regido pela lei, porém
o é, antes de tudo, pela Lei Fundamental, que é a Constituição.
Uma obrigação, para
ser imposta ao cidadão (art. 5º, II, CF), deve estar prevista em lei e em
harmonia com a Constituição. A Carta Magna de 1988 prescreve vários direitos e
garantias fundamentais que são invioláveis, tanto por uma conduta quanto por
qualquer ato normativo.
Ora, uma lei não deve
ser obedecida apenas por ser lei. Sua natureza não lhe confere uma aura de
inquestionabilidade e de exigência de obediência incondicional. Para que uma
lei seja válida e possa produzir os efeitos pretendidos pelo legislador, ela
deve seguir os trâmites legais para a sua criação, bem como deve estar em
consonância com a Lei Maior em seu aspecto material.
A legalidade formal,
então, é exatamente o seguir o procedimento formal para a criação de uma lei
daquela natureza. Legalidade material,
por sua vez, é o amoldar-se o conteúdo da lei aos direitos e às garantias
fundamentais, previstos constitucionalmente. Num
Estado Constitucional de Direito, a legalidade diz respeito a um Estado regido
por uma Constituição, a lei suprema, portanto as leis hierarquicamente
inferiores devem sempre obediência à suprema. Já que devem observar o
procedimento formal, disciplinado na Mater Legis, devem também, e com muito mais
razão, conformar-se com as normas constitucionais materiais. O princípio da
legalidade exige obediência incondicional à Constituição, seja em âmbito formal
(processo legislativo) ou em âmbito material (direitos e garantias
fundamentais). Aqui tem lugar a máxima nullum crimen nulla poena sine lege valida.
O Movimento de Lei e Ordem é
uma política criminal que tem como finalidade transformar conhecimentos
empíricos sobre o crime, propondo alternativas e programas a partir se sua
perspectiva. O alemão Ralf Dahrendorf foi um dos criadores deste movimento.
Na
década de 70 (setenta) nos Estados Unidos ganhou amplitude até hodiernamente,
com a idéia de repressão máxima e alargamento de leis incriminadoras. “A pena,
a prisão, a punição e a penalização de grande quantidade de condutas ilícitas
são seus objetivos” .
Um dos princípios do
"Movimento de Lei e Ordem" separa a sociedade em dois grupos: o
primeiro, composto de pessoas de bem, merecedoras de proteção legal; o segundo,
de homens maus, os delinquentes, aos quais se endereça toda a rudeza e
severidade da lei penal. Adotando essas regras, o Projeto Alternativo alemão de 1966 dizia que a pena
criminal era "uma amarga necessidade numa comunidade de seres
imperfeitos". É o que está acontecendo no Brasil. Cristalizou-se o
pensamento de que o Direito Penal pode resolver todos os males que afligem os
homens bons, exigindo-se a definição de novos delitos e o agravamento das penas
cominadas aos já descritos, tendo como destinatários os homens maus
(criminosos). Para tanto, os meios de comunicação tiveram grande influência
(Raul Cervini, Incidencia de la "mass media" en la expansión del
control penal en Latinoamérica, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São
Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1994, 5: 36), dando enorme valor aos
delitos de maior gravidade, como assaltos, latrocínios, sequestros, homicídios,
estupros, etc. A insistência do noticiário desses crimes criou a síndrome da
vitimização. A população passou a crer que a qualquer momento o cidadão poderia
ser vítima de um ataque criminoso, gerando a idéia da urgente necessidade da
agravação das penas e da definição de novos tipos penais, garantindo-lhe a
tranqüilidade .
Definitivamente,
questiona a distinção entre o direito e política sócio-econômica. Vê no direito
a exata noção da lei, em que concilia comportamentos aceitos ou não pela
sociedade, não sendo aceitos se aplica de forma máxima e absoluta a lei. Não
podendo ser argüido este inadequamento social devido a política sócio-econômica
do governo que gerou essa pobreza, desemprego, etc., posto que nenhum tribunal
é competente para abolir tais mazelas, o que irá implicar é se houve atos ou
conjunto de ações que deturparão ou não a lei.
Os adeptos do Movimento de
Lei e Ordem vêm neste a única solução para diminuir crimes como os terrorismos,
homicídios, torturas, tráfico de drogas, etc., é com o endurecimento das penas,
e a melhor das penas para eles é a de morte e a prisão perpetua. Pois assim,
além de está tirando do meio do convivo social das “pessoas de bem”, estará
também fazendo justiça à vitima.
Essa doutrina sofreu uma
ramificação,em meado de 1991, e ficou conhecida também como Tolerância Zero.
Originou-se em Nova York, no governo do então prefeito Rudolph Giuliani, e
assim como o Movimento de Lei e Ordem é também político-criminal.
Na realidade a política de
tolerância zero, surgiu não com o intuito primordial de diminuir a
criminalidade, mas de refrear a insegurança das classes altas e médias da
sociedade, tirando os “excrementos humanos” de suas vista recriminando
severamente delitos menores tais como embriaguez, a jogatina, a mendicância, segundo
Kelling .
Como já podemos perceber, o
movimento de lei e ordem surge trazendo a idéia de repressão à criminalidade de
forma implacável e com o total apoio da sociedade, principalmente daquela que
está passando por momentos de insegurança.
Em meados de 1989, os
brasileiros começaram a sofrer com crimes, ou melhor, não os que estavam
“acostumados”, mas com crimes que causavam pânico, como o seqüestro, principalmente
a pessoas de alta aquisição econômica. Com isso, a sociedade brasileira começou a clamar por
segurança, leis mais severas às pessoas que cometessem estes tipos de crime, e
assim o legislador constituinte o fez, dispondo no capítulo dos Direitos e Garantias
Fundamentais da Constituição Federal de 1988 que trata de forma especial crime
de maior gravidade à sociedade.
Indiscutivelmente,
no art. 5º, inciso XLIII, o legislador constituinte se apoiou na política
criminal da lei e ordem, em que a Lei 8.072/90 regulamenta sobre os crimes
hediondos, seguiu seu mesmo vetor ideológico. Sendo incessantemente tratado
neste trabalho o pensamento deste movimento, que transformou delitos pequenos
em crimes gigantescos com falta de acesso à liberdade.
Miotto traz em sua obra a
relação que o sistema penal brasileiro, desde a promulgação da República,
possui com o sistema penal norte-americano. Pois após a promulgação da
Republica o país precisava de um novo modelo de leis penais, pois o que possuía
não condizia mais com a realidade vivida a partir de então. Assim, com urgência
foi criado o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. Isso se deu pelo mau
costume que o Brasil possui de querer ser mais adiantado, mais moderno do que
realmente equivale .
Hodiernamente, assim como historicamente, o Brasil
também adotou a política de tolerância zero que surgiu na cidade note americana
de New York. Esta política aqui é adotada com o nome de crimes hediondos, tendo
como conseqüência prática para o sistema penal, o aumento da pena de todos os
crimes a que se refere a Lei n. 8.072/90.
Ao analisarmos a relação da Lei dos crimes hediondo com o
movimento de lei e ordem, percebemos nos dois a desconsiderado dos princípio: do mínimo potencial ofensivo
que estabelece ao direito penal a proteção de bens jurídicos apenas de crimes
com relevante potencial lesivo à vida em sociedade, atuando como última ratio
do ordenamento jurídico; da individualização da pena que estabelece a imposição
e o cumprimento da pena de acordo com cada individuo a partir da culpabilidade
e do comportamento do sentenciado; da dignidade da pessoa humana se reveste de
suma importância, pois é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os
direitos fundamentais do homem desde o direito a vida,que estabelece a
dignidade como fonte ética para os direitos, as liberdades e as garantias
pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais; da humanidade “é
assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral". O próximo
inciso do mesmo artigo assevera que: "às presidiárias são asseguradas as
condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período da
amamentação". Ainda mais enfatizante é o inciso XLVII, do citado artigo,
que dispõe: "não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra
declarada, nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de
trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis.
Que são valores constitucionais penais com o intuito
de fazer do direito penal um poderoso instrumento de proteção aos bens
jurídicos relevantes socialmente. Entretanto, o que percebemos na lei dos
crimes hediondos e no movimento de lei e ordem é a indiferença a estes
princípios. Pois, para qual quer conduta típica, não importando sua relevância
sócia, culpabilidade do sentenciado, a dignidade e a moral dos presos.
A proliferação da torelância zero no sistema
político-criminal brasileiro, somente somará na derrocada final de qualquer
tentativa de sucesso no combate aos delitos. Impressiona, nessa ascensão, o
papel de antítese que a imprensa nacional exerce, como já nos referimos.
Manchetes sensacionalistas, discussões sobre a menoridade penal, diálogos em
novelas (“pôxa, como o Rio está violento..”), entre outros, criam o ambiente
perfeito para o chamado “processo social de idiotização”, onde repetimos frases
feitas, chavões que interessam a poucos .
E assim, percebemos por meio da política de tolerância
zero, implementada pela lei dos crimes hediondosa, a banalização do direito
penal, em que "proibir grande quantidade de ações diferentes não é
prevenir delitos que delas possam nascer, mas criar novas", percebemos
então que o Direito Penal apenas deve interferir em casos graves, quando outros
ramos do direito não conseguirem resolver e que apenas ele seja capaz de ser
eficaz, agindo no entanto em ultima ratio.
Induvidosamente, ciências que tocam tão de perto a
cidadania como o Direito Penal e o Direito Processual Penal tendem a assumir as
feições do povo ao qual pertencem seus professores e estudiosos. Assim, é quase
inevitável que se faça, no Brasil, um Direito Penal tipicamente brasileiro.
Nisso não vai nenhum mal, até porque se ele tem de ter algum rosto, melhor que
tenha o nosso, pois o alemão e o italiano são bons precisamente na Alemanha e
na Itália. O mal nasce e medra se o Direito Penal assume a pior faceta, o pior
ângulo da face desse povo. É trabalho que compete aos estudiosos, que de
diferente do povo têm apenas o fato de poderem ver um palmo adiante do nariz
procurarem simplesmente a melhor parte da "alma popular" para seus
Direito Penal e Processual Penal. Um aspecto da personalidade do povo latino
que, induvidosamente, influenciou o Direito Penal, é o de enfrentar as
agressões emocionalmente, através de contra-ataques virulentos, na procura
constante de uma arma suficientemente potente para enfrentá-las, como se a
potência fosse garantia de eficiência. Esse procedimento muito tem de
estratégia militar, sendo que a emoção prejudica, induvidosamente, a visão
tranqüila. Assim nasceu e vicejou, lamentavelmente, o Direito Penal do
Terror", que não é expressão nossa, mas que vem sendo cada vez mais
utilizada para designar a paranóia que tomou conta da experiência penal. Quais
são suas características? Muitas, embora se possa obter consenso sobre as
principais, a saber: criação de um clima de guerra, em que o criminoso é visto
como um inimigo a ser alvejado, sanções penais violentas, discurso penal
marcado pela demagogia, criação de tipos penais sem critério que não a
necessidade contingente e, por vezes, falsa ou tendenciosa, de obter, da
população, condutas ou omissão de condutas etc.
Enfim, percebemos que o Brasil historicamente costuma
adotar o mesmo sistema penal dos Estado Unidos, e agora não ia ser diferente,
sem fazer algum estudo sobre qual sistema criminal melhor se aplica no Brasil.
Pois, cada lugar é um lugar, cada país possui dificuldades sócio-econômicas
diferentes. Mas o Brasil é como aquele “guri que amarrava no pescoço uma gravata
do pai, e saía jactancioso, sentindo-se adulto, igual ao pai...”
O direito penal do inimigo, amplamente divulgado
através da obra de Gunther Jakobs, é um sistema penal punitivista, com vistas
não somente ao fato perpetrado mas, principalmente, à personalidade do agente
transgressor da lei. Tal sistema, devido ao seu radicalismo extremo, cercado do
abandono aos direitos fundamentais do indivíduo, não é abertamente aceito pela
legislação pátria, haja vista seu total antagonismo aos preceitos
constitucionais e aos tratados de direitos humanos adotados pelo Brasil.
Todavia, mesmo que de forma lenta, iniciando-se pelo
legislador ordinário, leis esparsas vêm sendo introduzidas em nosso ordenamento
jurídico, visando justamente a punição exacerbada de certos autores de delitos
específicos, coadunando-se com o estereótipo traçado por Jakobs. O discurso do direito penal
do inimigo prega um direito penal de exceção que não coaduna com um Estado
Democrático de Direito, onde a exceção somente pode ser utilizada quando de
fato o Estado estiver em um estado de exceção (guerra, estado de sítio, etc).
O radicalismo extremo transcrito na obra de Jakobs,
travestido em falsa percepção de segurança, na prática gera exatamente o
oposto: a insegurança.
A punição
indiscriminada do autor cria instabilidade jurídica, ao ponto de o indivíduo,
sabedor que não importa se sua conduta será mínima ou máxima, será punido com
todo rigor da lei, cria um movimento adverso à pacificação social, qual seja, a
desconfiança na prática da Justiça.
Também os
pensadores de outrora foram eleitos como inimigos e, pelo Estado, tratados com
rigor desnecessário, como ocorreu na época do ato institucional nº5. Não que a
comparação seja fiel ao caso, todavia, também naquela época punia-se o autor pelo
que ele era, independentemente do fato praticado ou, na maioria das vezes,
existindo somente de forma não exteriorizada.
A eleição do direito penal como mecanismo de controle
social não é e nem nunca foi uma alternativa à evolução das políticas
criminais, entretanto, em busca de um imediatismo que cause (mesmo que
falsamente) uma perspectiva de punição ao infrator em uma sociedade já
assoberbada da crescente criminalidade anunciada na imprensa midiática, vem
sendo utilizada causando séria violação aos direitos humanos. Esta violação
perpetrada contra os atuais inimigos do Estado, somente explica-se através
do direito penal do inimigo anunciado por Jakobs, para quem, o agente infrator
seria um não humano.
Inexiste um critério objetivo, como inclusive demonstrou a
pesquisa da Dra. Luciana Boiteux, para o cerceamento de direitos dos cidadãos,
tendo atuado a Justiça criminal brasileira com conjecturas sobre circunstâncias
pessoais e, em algumas vezes, ao completo arrepio da lei, para aumentar ainda
mais o rigor já exacerbado da legislação punitivista.
Infelizmente, o que percebe-se, conforme ementa
transcrita no presente artigo, é que o movimento de eleição de inimigos para
sofrerem todas as privações de um direito penal do inimigo, que iniciou-se pela
Justiça de primeira instância, tem tido também seu lugar nos tribunais
superiores, causando ao operador do direito atendo às garantias fundamentais do
ser humano, espanto e descontentamento com a falta de distribuição da
verdadeira Justiça.
A expansão da legislação voltada à punição do autor,
deveria, por certo, ter seu centro de controle no poder judiciário que, antes
de tudo calcando-se na Constituição Federal, haveria de preservar os direitos
fundamentais nela expostos, funcionando como um sistema de compensação à
expansão do punitivismo pelo legislador, entretanto, objetivamente extrai-se da
pesquisa estudada, que também parte do judiciário foi contaminada pelo
movimento anti-humano (ou mesmo anti-humanidade) extraído da
obra de Jakobs.
Acredita-se, com toda vênia e sem embargos de opiniões
divergentes, que a solução para a criminalidade, não somente no Brasil como em
qualquer País, não deve ter seu foco na punição do autor de um fato, quiça de
um crime, iniciando-se através de políticas sociais de inserção. O sujeito hoje
iniciado na criminalidade, por certo, caso obtivesse oportunidades em um
mercado formal (ou mesmo informal) de trabalho, dificilmente optaria pela
delinqüência, caso entenda-se ao contrário, estar-se-ia legitimando a doutrina
de Garófalo e Lombroso sobre o criminoso nato, justificando-se a repressão
propugnada por Jakobs como único meio de combater o doente social incurável que
deve ser expurgado da sociedade e tratado com todo o rigor possível pelo
Estado.
A aceitação da sociedade, representada por seus
legisladores e, atualmente até mesmo do poder judiciário, de uma atuação
enérgica e desprovida de garantias somente tem lugar em um Estado autoritário.
Entende-se, por fim, que ou existe uma regressão do movimento do direito penal
do inimigo em nosso País, ou certa é a falência da Justiça Criminal, seja pelo
descrédito, seja pelo rigor, ou até mesmo pelo despropósito em se seguir uma
legislação sabendo-se já estigmatizado por condições ambientais que certamente
criarão no cidadão uma desconfiança perpétua em relação à própria insegurança
frente ao Estado.
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